12.4.16

O sonho e o mundo das trevas - James Hillman

PALAVRAS INICIAIS
Um dos temas que mais me motiva aprofundar no estudo da psicologia são os sonhos. Nesse sentido iniciei a leitura deste livro sem saber ao certo aonde estava me metendo. 

Até praticamente o final do livro ainda não tinha conseguido formar uma imagem a partir das peças desse quebra cabeça. Essa imagem se revelou como uma Atitude em relação aos Sonhos que devolve à Vida um sentido de profundidade e dá à Alma o alimento que é necessário para seu crescimento.

DO LIVRO
Objetivo
O objetivo do livro é despertar uma atitude de Cultivo da Alma através do Trabalho com Sonhos.

Estrutura
Estou há alguns dias tentando visualizar a estrutura através da qual o pensamento do James Hillman construiu esse livro. Embora tenha sido divido em seis capítulos (Ponte, Freud, Psique, Barreiras, Sonho e Praxis), a hipótese que mais me pareceu válida é que os seis capítulos se conectam através de um ponto central: Cultivo da Alma.

Percebi que a maneira de expor o livro pode se dar segundo dois movimentos: negativo e positivo. Negativo no sentido de expor o que não é o Cultivo da Alma; Positivo no sentido de expor o que é o Cultivo da Alma. O Trabalho com os Sonhos é esse Cultivo que nos convida ao mundo das trevas, onde esta descida faz nossa Alma crescer e se fortificar.

Aqueles que descem rumo ao Hades encontrarão nos seus portões sempre aberto a seguinte advertência: Deixai toda esperança, ó vós que entrais! Dessa forma, caro leitor, se resolver fazer essa incursão comigo através deste pequeno texto, alerto que só encontrará profundeza sem chão, escuridão sem luar, uma consciência adormecida, repetição e morte. Está é a terra de Sísifo, condenado a rolar eternamente sua pedra montanha acima e vê-lá descer montanha abaixo.

Neste livro podemos ver que o James Hillman como o guia que nos conduz pelo mundo das trevas. Sua atitude é semelhante a de Virgílio que ajuda Dante a passar por todos os infernos e então encontrar com Beatriz... a Alma.

DO MOVIMENTO NEGATIVO
Será que somos capazes de perceber que o rei está nu? Essa é a proposta do James Hillman neste livro, que traz um ponto de vista novo e desconstrói outros. Existe uma grande virtude em desmontar estruturas (computadores, celulares, brinquedos, etc), pois nesse processo você conhece as particularidades dos seus componentes e se torna capaz de diagnosticar problemas e propor soluções. De forma semelhante iremos expor as peças separadas pela desconstrução da maneira tradicional de nos aproximar dos sonhos, que em regra segue a seguinte fórmula:
O sonho requer tradução para a linguagem desperta, ou para estender o domínio da consciência desperta, ou para servir a demanda da natureza por uma consciência qualitativamente mais ampla e balanceada.
No movimento negativo vamos contrapor a tendência de interpretar os sonhos, que apenas reforça as estruturas solidas do ego e que traz para a superfície os símbolos oníricos. A proposta de contrapor a forma de trabalho com os sonhos de Freud e Jung não abandona todos seus fundamento, mas tal como o autor indica:
Não os estarei seguindo ao trazer o sonho para o mundo diurno de nenhuma forma a não ser a dele, o que implica que o sonho não precisa ser encarado quer como uma mensagem a ser decifrada para o mundo diurno (Freud), quer como uma compensação a ele (Jung).
Na perspectiva de quem cava, a profundidade cresce a medida que se retira a terra. Essa é uma imagem me faz visualizar o que vem a ser a Profundeza do ponto de vista do James Hillman. A profundeza retira o escopo do fisicamente científico, conduzindo a um caminho metafísico filosófico. Retoma dessa forma o campo de estudo da psicologia para a Alma, em cuja natureza "nunca podemos nos aprofundar suficientemente". Para essa Psicologia Profunda, a alma se torna o objeto principal de estudo. Nesse sentido ele lança o fundamento de seu Trabalho com a Alma segundo os ensinamentos de Heráclito:
Com Heráclito aprendemos que a alma não é apenas uma região, no sentido topográfico freudiano, ou mesmo uma dimensão, no sentido do próprio Heráclito. Ela é uma operação de penetração, uma compreensão das profundezas que faz alma à medida que prossegue. Se a alma é um motor primeiro, então seu movimento primário é o de aprofundar, por meio do qual ela aumenta sua dimensão, assim como Freud acrescentou cavernas e componentes à psicologia em suas explorações topográficas. A busca das conexões secretas numa dimensão sem limites é responsável pelo imperialismo latente da psicologia. Não há limites para a profundidade, e todas as coisas compõem-se e decompõem-se, geram e degeneram em almas (fragmento 36), primeiro e o último termo de nosso mundo em movimento.
Esse parágrafo é a pedra fundamental sobre a qual todo o livro é construído. Na via negativa percebemos que a alma não é apenas pensamentos e sentimentos, tal como Fernando Pessoa ilustra no seu Livro do Desassossego (texto 255), mas se aproxima da sua primeira descrição, onde ele diz que "a alma humana é um abismo obscuro e viscoso, um poço que se não usa na superfície do mundo".

Nessa perspectiva da profundeza do citado poço e do seu não uso na superfície, é possível reforçar a necessidade de uma psicologia fundamentada no "Chamado de Hades", com o proposito de adentrar sempre que falamos de alma. Nessa perspectiva, somos convidados a deixar de lado as traduções dos sonhos que ao invés de ir em direção ao mundo das trevas, conduz ao mundo desperto.

O autor contrapõe o trabalho realizado com os sonhos que os retira do mundo das trevas e os conduz rumo à luz do dia. O trabalho de encarar o sonho como contendo uma implicação imoral ou uma indicação moral que acerta as coisas e corrige o equilíbrio é lê-lo a partir da perspectiva do mundo desperto, do ego heroico. Segundo o autor:
Aquilo que sabemos da vida pode não ser relevante para aquilo que está abaixo da vida. O que sabemos e fizemos na vida pode ser tão irrelevante para o mundo das trevas como as roupas que nos ajustam para a vida ou a carne e os ossos que as roupas cobrem.
Segundo Heráclito - quando os homens morrem, o que os aguarda não é nem o que esperavam, nem mesmo o que imaginavam. O autor analista esse fragmento e faz as seguintes considerações:
A palavra aqui traduzida por "espera" está relacionada em grego à "esperança" (elpis), de forma que a esperança específica que é abandonada (Dante, Inferno 3) ao entrarmos na perspectiva do mundo das trevas é a fantasia das expectativas da vida diurna e das ilusões de carne e sangue. [...] Ir a fundo num sonho requer o abandono da esperança, a esperança que se levanta pela manhã e que viraria o sonho na direção de seus propósitos. No nível de Hades dos sonhos não há nem esperança, nem desespero. Eles se anulam; e podemos então prosseguir para além da linguagem das expectativas, que mede progressões e regressões, fortalecimentos e enfraquecimentos do ego, luta e fracasso.
O mundo das trevas conduz ao sono (Hipnos), os sonhos (Oniros) e Thanato (morte). Uma frase que me chamou atenção no livro, que diz que "uma vida vivida em estreia conexão com a psique realmente traz um insistente sentimento de perda". O que me remete a frase de Nietzsche, que diz que ele deve mais aos dias de dor que aqueles felizes. Outro que de maneira bastante esclarecedora falou sobre esse tema é o Leonardo Boff em seu vídeo do Eu Maior, onde ele explica que a filosofia (alma?) não surge apenas da beleza, mas do sofrimento da vida. Bem como Buda que estabelece suas quatro nobres verdades, que são construídas em cima de dukkha. Continua o James Hillman falando que:
Realmente, estamos experimentando uma dimensão diferente [mundo das trevas] e o preço de sua admissão é a perda do ponto de vista material. Dessa perspectiva uma dimensão é abandonada, mas isto é ganhar o Hades e os ecos camerísticos presentes em seus salões. 
São indicadas no livro três hábitos mentais que nos impedem de apanhar a ideia do mundo das trevas enquanto reino psíquico: materialismo, oposicionalismo e cristianismo.

O materialismo pode ser sofisticado ao ponto de não aceitarmos um sonho "como uma imagem autóctone, uma invenção sui generis da alma. O sonho não é feito de algo além, vindo de outro lugar". O materialismo nos distancia da nossa alma, e dessa forma "quanto menos mundo das trevas, menos profundidade e mais espalhada horizontalmente torna-se nossa vida". Diz o autor:
A visão materialista acaba numa espécie de vazio, os próprios salões do Hades agora apenas um vácuo espiritual, pois seus mitos e imagens foram chamadas de simulacra irracionais, fantasias de medo e desejo. O fim é a depressão - e isto sugere que a abundante, embora mascarada, depressão de nossa civilização é parcialmente uma resposta da alma a seu mundo das trevas perdido. Quando a pessoa deprimida vai à terapia para analisar o inconsciente, ela pode redescobrir lá - graças a Freud - novamente o mundo das trevas.
O oposicionismo é auto explicativo, e encontra eco na teoria Junguiana de compensação, da enantiodromia e questões alquímicas. O que o James Hillman alerta é a tentativa do analista de inserir novos elementos ao sonho para balanceá-lo, e complementa:
Ele falhou não percebendo que o oposto já está presente, que cada evento psíquico é uma identidade de ao menos duas posições e é portanto simbólico, metafórico e nunca unilateral. Apenas se o tomarmos de um lado é que ele assim se torna; ao tentar balanceá-lo quebramos sua harmonia secreta. [...] Cada sonho tem seu próprio fulcro e balanço, compensa-se a si mesmo, é completo como está. [...] [Os próprios sonhos] apresentam numa única imagem aquilo que vemos na linguagem dos opostos.
 O cristianismo se distanciou dos Sonhos. Embora no velho testamento seja muitas referências aos sonhos, eles desempenharam um papel menor no Novo Testamento. Segundo o autor, o verbo sonhar não aparece no Novo Testamento, e sonho aparece apenas três vezes, somente em Mateus. "Os sonhos só podiam ser revelações do mundo noturno, mensagens de tentação da tribo de demônios de satanás.


E concluindo o Movimento Negativo, o Trabalho do Sonho consiste em reverter nosso procedimento habitual de traduzir o sonho para a linguagem do ego e, em vez disso, traduzir o ego para a linguagem do sonho. "Vamos então suspender toda uma série de operações egoicas, o trabalho do ego, os modos pelos quais o ego tem se aproximado do sonho e operado suas traduções". O trabalho com os sonhos deve evitar encontrar:
  • causalismo: enxergar as sequências no sonho em conexões causais;
  • naturalismo: assumir que os eventos do sonho devam estar de acordo com a natureza do mundo de cima;
  • moralismo: enxergar posições morais no mundo das trevas e no sonho como expressão compensatória da consciência autorreguladora;
  • personalismo: acreditar que o reino da alma abarca principalmente a vida pessoal;
  • temporalismo: conectar eventos dos sonhos com o passado ou com o futuro, quer como recapitulações do que aconteceu ou profecias com respeito ao que virá;
  • voluntarismo: enxergar o sonho em termos de ação, o que requer uma resposta em ações - "os sonhos nos dizem o que fazer";
  • humanitarismo: que o sonho seja primariamente um reflexo de, e uma mensagem das, questões humanas;
  • positivismo: ler o sonho como um postulado, uma afirmação de posições, à qual julgamentos positivos e negativos podem ser aplicados;
  • literalismo: tomar qualquer sonho ou qualquer aspecto num sonho como unicidade de significados, esquecendo assim cada pedaço do sonho, incluindo o "eu" onírico, é uma imagem metafórica.
Continua o autor contraponto:
Assim como o ego vê um conjunto de fatores pejorativos trabalhando no sonho (regressão, distorção, deslocamento), também a perspectiva do mundo das trevas vê um conjunto de atitudes pejorativas (humanismo, personalismo, literalismo) trabalhando no ego. São essas atitudes que primeiro precisam ser suspensas antes de podermos abordar o sonho num estilo todo diferente.
Os argumentos que embasam o Trabalho com Sonhos na ótica Negativa são inúmeros e para fins de uma explicação geral acredito são suficientes. O Movimento Negativo é a atitude de viver os símbolos sem a necessidade da interferência da mente racional e utilitarista.

DO MOVIMENTO POSITIVO
Existe um desafio ao tentar positivar elementos que pertencem ao mundo das trevas com sua inerente subjetividade. A proposta do livro, como já foi dito, é desenvolver uma atitude frente ao Trabalho com os Sonhos, sendo esta atitude o foco deste capítulo. Retomando a questão fundamental levantada por Heráclito:
Com Heráclito aprendemos que a alma não é apenas uma região, no sentido topográfico freudiano, ou mesmo uma dimensão, no sentido do próprio Heráclito. Ela é uma operação de penetração, uma compreensão das profundezas que faz alma à medida que prossegue. Se a alma é um motor primeiro, então seu movimento primário é o de aprofundar, por meio do qual ela aumenta sua dimensão, assim como Freud acrescentou cavernas e componentes à psicologia em suas explorações topográficas. A busca das conexões secretas numa dimensão sem limites é responsável pelo imperialismo latente da psicologia. Não há limites para a profundidade, e todas as coisas compõem-se e decompõem-se, geram e degeneram em almas (fragmento 36), primeiro e o último termo de nosso mundo em movimento.
Essa proposta indicada é o chamado de Cultivo da Alma (soul-making). Essa noção pega emprestado a palavra cultivo da agricultura e lhe coloca no campo da psicologia, trazendo para o Trabalho com Sonhos a dimensão de cuidado que se tem no plantar e colher. 

Heráclito nos mostra a Alma como uma "operação de penetração", o que leva a crer que o Trabalho com a Alma gera seu crescimento. Além disso, percebemos que a natureza da alma é a profundeza.
O Trabalho do Sonho cozinha os eventos da vida em substâncias psíquicas através de modos imaginativos - simbolização, condensação, arcaização. Esse trabalho retira as questões da vida e as transforma em alma, e ao mesmo tempo alimentando a alma a cada noite com novo material.
PRÁTICA 
Percebi que falar desse livro se mostrou uma tarefa muito difícil. Não tenho fluidez para tratar desse assunto, pois acredito que me falta elementos que ajudem na compreensão da proposta do James Hillman. A psicologia profunda exige de seu estudante um vasto conhecimento da mitologia e da filosofia de Freud e Jung. Como o próprio autor propõe, o trabalho com sonhos deve ser compreendido tal como uma poesia... e do que nos serve explicar a beleza do poema se podemos ouvi-lo ser declamado? Nesse sentido proponho para você leitor obstinado o convite de ler esta obra.

Concluo esse texto com uma leitura bastante pessoal da obra. Nela vejo que a proposta do James Hillman me fez perceber que para um determinado grupo de sonhos... aqueles que nos mostraram um mundo inimaginável... estes sonhos necessitam serem mantidos no mundo das trevas. Ao que me parece, tais sonhos não vêm como uma mensagem codificada... pelo contrário... a mensagem deles é exata ao ser tal como é. A exemplo dos templos gregos dedicados à cura... os doentes não iam lá para serem examinados... mas para dormir e receber a visita do deus através de um sonho... o sonho não precisa de interpretação quando ele é a própria cura.