15.6.15

O Asno de Ouro - Marie Louise von Franz


HISTÓRIA
Aprendi a respeitar a Marie Louise von Franz quando ela foi citada na biografia do Robert A. Johnson . Meu primeiro contato com ela foi com uma série de quatro vídeos sobre Sonhos. Logo comprei alguns de seus livros e deixei esperando um momento oportuno. E seguindo a Insustentável Leveza do Ser peguei o Asno de Ouro sem grandes expectativas. E agora que terminei de ler esse livro, considero que ele entrou no Rol dos melhores que já li.

PERCEPÇÕES
1) Sobre o Livro

O livro é uma análise do romance de Apuleio chamado O Asno de Ouro, onde a ideia partiu do próprio Jung que a autora realizasse uma análise aprofundada desta obra do século II d.c.

Através do romance é possível ver a vida do personagem principal, Lúcio, que passa da situação de um homem fascinado pelo sobrenatural, mulherengo e incapaz de levar nada a sério para condição de um asno. Na condição de asno ele vive outras tantas experiências e ouve inúmeras histórias, estando entre essas a histórias de Eros e Psique. Após tantas desventuras ele consegue retornar a sua condição humana, mas agora como um ser humano completo e realizado.

Em que ele se tornou? Vale a pena ler o livro para saber, mas ele conseguiu realizar aquela totalidade e unidade em si mesmo e com o mundo. A esse processo no qual o homem deixa sua condição mais indiferenciada e incompleta rumo aos cumes da realização do Ser jung chama de Individuação.

2) A Individuação e Alquimia

A individuação é um processo pelo qual o ser humano atravessa em busca do retorno ao Si-Mesmo, ao chamado Self. A autora enumera os passos da individuação associando às etapas alquímicas. Vou copiar suas palavras de forma sumarizada os quatro estágios alquímicos: Nigredo, Albedo, Rubedo e Citrinitas:

  • Nigredo
    • O enegrecimento corresponderia à confrontação inicial com o inconsciente, no qual a atitude consciente prévia obscurece.
    • Este é um estágio em que grande parte dos problemas relacionados com a Sombra aparecem, já que o nigredo é, num certo sentido, o encontro com a Sombra.
    • Nesse momento, todo o inconsciente se apresenta sob essa condição sombria porque tudo aquilo que foi deixado na obscuridade pela atitude consciente emerge nesta oportunidade.
    • E por isso que, com frequência, o primeiro contato com o inconsciente provoca uma profunda depressão, um desgosto consigo próprio, um sentimento de confusão, uma desorganização da atitude consciente prévia, um estado ou percepção de estar "perdido no escuro.
  • Verde:  Estágio transitório. Após a travessia do estado de choque com a sombra a vida começa a ressurgir
  • Albedo:
    • O segundo estágio surge com o problema que representa a realização do animus e da anima, no qual o indivíduo é ainda mantido apartado da realidade exterior.
    • A grande tarefa ao longo dos anos seguintes será a integração destas duas grandes forças.
    • Nesse período, o indivíduo ainda se encontrará, por assim dizer, na terra dos mortos.
    • Não se pode trabalhar o problema da relação com a anima ou com o animus sem que se passe por uma temporada substancial de introversão.
    • Mesmo que a anima ou o animus surja na vida concreta de maneira transferencial, ou seja, sob a forma projetada na pessoa de uma mulher ou de um homem reais, o único aspecto que o indivíduo pode trabalhar é aquele relacionado à sua subjetividade.
    • É um estado em que as projeções ainda se confundem com as outras pessoas. 
    • É necessário, portanto, resguardar, numa espécie de retorta, o nosso trabalho interior e se manter numa atitude de completa reflexão, na acepção literal do termo, ou seja, voltado sobre si mesmo, de modo a se tornar progressivamente mais consciente desses aspectos do inconsciente.
  • Albedo e Nigredo: O alquimista é confrontado com um trabalho árduo, que é o mesmo do analisando durante o processo analítico.
  • Opus: O trabalho consiste em tentar se tornar consciente dessas forças: da Sombra e da Anima/Animus. Quando se completa essa parte, o alquimista diz que o trabalho pesado terminou.
  • Rubedo:
    • A partir desse momento, o indivíduo precisa apenas continuar a acalentar sua própria substancia por meio de um "fogo brando e doce", sem grandes esforços. 
    • Na etapa Rubedo pode-se abrir a retorta e, como diziam os alquimistas, "deixar o sol ou a pedra filosofal sair e governar o mundo". Numa linguagem menos poética isso seria o início da realização do Self.
    • E nesse momento, "Ele" assume o comando do processo, de modo que o ego não precisa mais trabalhar como antes. 
    • A estrita situação de introversão reflexiva pode agora ser relaxada.
    • No processo de realização do Self, é igualmente importante compreender que o Self deseja ser chancelado internamente, assim como também necessita que seu dinamismo seja concretizado no mundo externo.
    • O indivíduo se torna um servo de um princípio que oscila e que se manifesta ora introvertida ora extrovertidamente. O Self pode demandar que algo seja empreendido no mundo externo, assim como também no coração do indivíduo.
    • A retorta nesse modo, se mostra desnecessária, já que o Self não é algo que dissocia.
    • Foi preciso que primeiro se conseguisse uma solidez no núcleo psíquico por meio de um processo alquímico, como parte de um artifício destinado a impedir a desintegração da personalidade.
  • Citrinitas:
    • A robustez do vaso agora se transmutou em pedra filosofal, ou seja, numa experiência interior permanente do Self, que doravante, confere ao indivíduo a mais completa firmeza, tornando supérflua toda consolidação ou solidificação exterior artificial.
São essas as quatro etapas alquímicas relacionadas ao processo de individuação indicados pela Marie Louise von Franz. Caberia em cada item muitos questionamentos para entender como se desenrola entre si as etapas. A autora ainda continua da seguinte forma:

Embora se possa ler, com frequencia nos textos que sumarizam as ideias de Jung, que o processo de individuação de inicia pela tomada de consciência da sombra, passando a ter com a Anima e com o Animus e depois com o Self, isso contudo é apenas grosso modo verdadeiro.
Na verdade, no início o indivíduo se vê na presença do inconsciente na sua totalidade, junto a todos seus aspectos, como o Self, o Animus, a Anima e a Sombra. Mas os elementos da sombra são, muitas vezes, tudo o que as pessoas talvez sejam capazes de discernir subsequentemente ao impacto que recebem. A sombra é a única condição próxima o bastante e, portanto, passível de ser apreendida.. Pode ser talvez, a única coisa que se pode clarificar e tornar real, o restante permanece geralmente, bastante abstrato. Só após se ter trabalhado com a sombra é que se começa, progressivamente, a discernir alguma coisa mais. Um homem reconheceria que um elemento feminino subjacente faz parte de sua personalidade, assim como a mulher perceberia a presença de um elemento tipicamente masculino. O indivíduo, portanto, se torna conscio de um polo sexual oposto, feminino ou masculino, complementar à sua personalidade consciente. Nesse momento, a figura do Animus ou da Anima são os que carreiam, novamente, todo o inconsciente. É por isso que Lúcio, na sua visão, reencontra o arquétipo da Anima inteiramente identificado com ao Self.

3) Dificuldades na Caminhada

Quero deixar registrado que esse livro é fenomenal. Há tempos venho lendo bons livros, mas dos recentes esse foi o melhor. De certa forma ele se parece com o We, do Robert A Johnson, no entanto o We é um livro que lança a base dos conceitos Junguianos. No Asno de Ouro é feita um aprofundamento nos conceitos. O livro é uma beleza que só ele.

E ai? O que fazer com mais de trezentas páginas de análise de uma história que tem quase dois mil anos?

a) Sombra

O primeiro ponto que posso citar é a percepção que agora toma uma forma mais clara que é a característica de muitos que conheço que ao empreender um processo de auto descoberta entram numa continua identificação com seus aspectos sombrios e acabam por cair em uma espécie de torpor e depressão que paralisa a caminhada e que torna essa fase de "noite escura da alma" em algo que parece não ter fim.

Como a autora falou, a Sombra é um dos arquétipos que estão adormecidos no inconsciente, mas que está mais próximo de ser apreendido, ou seja, de ser verificado e integrado na nossa natureza. Mas ai surge um problema que é como Jung afirma - "uma pessoa pode se tornar consciente de seus aspectos de sombra com certa facilidade, mas lutará até a última força contra a possibilidade de constar o ouro em sí".

Essa é a primeira percepção. Quando iniciado o processo de individuação não se pode ficar confinado ao aspecto negativo da Sombra, pois embora associamos corriqueiramente a sombra com nossos defeitos, ela vai além. Pois a sombra é tudo aquilo que busca por ganhar expressão consciente, mas que o ego não admite que venha a tona. Portanto o Ouro, o lado positivo, é a maior das Sombra de muitas pessoas.

Constato isso principalmente em conversas corriqueiras em que muitos afirmam: "o Ser Humano é assim mesmo, corruptível. Roubará tudo o que seu braço pode alcançar e que os olhos dos outros não poderá ver". Mas essa é a visão de quem tomou consciência somente do aspecto negativo da sombra. Ainda não tomou consciência do aspecto luminoso que também se tornou sombra.

A forma que vejo de todos que estão identificados com o aspecto negativo da Sombra ir rumo a seu aspecto positivo é tomando consciência da Anima/Animus.

b) Anima/Animus

O segundo ponto a ser levantado é a tomada de consciência da Anima/Animus.

Anima e Animus se mostram como uma ponte através da qual é possível alcançar o numinoso. A percepção da beleza, da suavidade, do lado luminoso da vida se encontra no domínio desses dois arquétipos.

Mas por trás dessa ponte ao numinoso existe a grande chance de uma enorme quantidade de energia seja transferida através de projeção para elementos externos. Essa energia associada ao aspecto de Sombra, da primeira etapa, gera uma descida mais íngreme rumo a um estado que agora pode despontar em paixões avassaladoras, intolerância, fanatismo e expressões totalitárias.

A expressão exteriorizada da energia da Anima/Animus impede que a alma ascenda, mantendo ela escrava das projeções externas. O caminho a ser percorrido envolve o processo consciente de voltar a energia da Anima/Animus para o interior.

Mas a Anima/Animus é cheio de truques e normalmente somos vítimas de seus estratagemas. Portanto ao que parece é necessário ser calejado antes de integra-los em nossa individualidade.

a/b) Repassando

Ao que parece a tomada de consciência da Sombra se passa através da conscientização do fenômeno da Projeção.

E a tomada de consciência da Anima/Animus? Ao que parece é necessário que também seja feito a análise segundo a ótica da Projeção. Bem como o calejamento através de experiências de vida, rumo a uma interiorização da energia desses arquétipos. Nada muito claro nesse campo... mas iria nesse sentido. Mas falta algo.

c) Enantiodromia

Como foi dito a alma precisa passar por um período de descida. Ísis no livro é associada com quem fez com que Lúcio fosse conduzido a uma queda inicial, seguido da perda quase completa de sua humanidade através da transformação em um Asno. E quando chegou ao fundo do poço surge o momento da Enantiodromia, o momento em que a curva descendente se torna ascendente. A conversão religiosa. O momento de Transformação do ego que se encontra dissociado em inúmeras identidades autônomas em um indivíduo integro, no sentido de sem separações internas.

Segundo a autora, no momento da Enantiodromia todos os demônios se rebelam ante a possibilidade de serem exorcizados. Numa linguagem psicológica, é o momento de maior dúvida e desespero da alma nessa grande noite escura. Ela afirma que é o momento em que muitos desistem da própria vida, ou entram em estado completo de dissociação, em uma psicose.

E surge a pergunta? O que Lúcio fez para não ser vencido por suas sombras? Sejam essas expressas como deuses ou demônios. Continua a autora com a fórmula capaz de cortar esse nó górdio que conduz a Enantiodromia:
Lúcio é tomado por uma profunda repulsa frente á ideia de [...], pela primeira vez ele se recusa, terminantemente, a ser apanhado nesse tipo de trama da anima. Ele se mantém fiel a si mesmo e cônscio acerca de sua próprias reações morais.
Ele se liberta mantendo-se fiel a si mesmo. Mas essa fidelidade não é simplesmente aderir a regras morais indicadas em códigos. A resposta a uma pergunta moral como a de Lúcio não será encontrada em qualquer lei ou trilha percorrida por quem quer que seja. Não é a toa que dizem que quem percorre o caminho da individuação encontra a maior das solidões. Mas como uma pista, fica a afirmação. Essa afirmação pode tanto não dizer nada, como pode dizer muito: manter-se fiel a si mesmo.

Seja o que for que isso signifique para a Alma que está contra a espada e a parede, manter-se fiel a si mesmo é está relacionado a percepção de um Si Mesmo superior.

Não é atoa que após esse evento Lúcio, na forma de Asno, segue para a encosta de uma montanha, banhada pelo Mar. Lá ele faz uma oração direcionada a Ísis onde despe suas máscaras e pela primeira vez fala com o coração aberto num tocante momento. No seu desespero ele faz uma oração a deusa com tantas faces, nas palavras do próprio Lúcio:
[...] "Ó Rainha do céu[...] Tu que expandes a luz feminina por toda parte, nutres com teus raios úmidos as sementes fecundas, e dispensas em tuas evoluções solitárias uma incerta claridade; sob qualquer aspecto qual seja legítimo te invocar (Ceres nutriz, Venus celeste, Diana ou Prosepina) - assiste-me em minha desgraça, que agora atingiu o cúmulo; afirma a minha fortuna periclitante. Depois de tantas e tão cruéis passagens, concede-me paz e tréguas. Basta de trabalhos. Basta de perigos. Despoja-me desta maldita figura de quadrupede. Devolve-me à vista dos meus, devolve Lúcio a Lúcio. Ou, se alguma divindade ofendida me persegue com vingança inexorável, que me seja ao menos permitido morrer, se não me permitem viver" Foi assim que me expandi em preces e chorosas lamentações, até que o sono, invadindo de novo memu espírito elanguescido, pousou sobre mim [...]
Nesse trecho é possível  ver novamente a questão que Lúcio coloca outrora com uma ideia melhor do que venha a ser "ser fiel a si mesmo". Ele pede a deusa: "devolve Lúcio a Lúcio". E cada um entende o que quiser dessa súplica, mas ai está talvez o caminho rumo à Transformação.

4) Fechamento

Deixo registrado uma percepção. Pegando as quatro etapas alquímicas é possível ver que as duas primeiras correspondem ao Despertar da alma. A terceira é o momento da Transformação. A quarta é a Transmutação.

E finalizo agora com um último trecho que descreve em síntese sua história e a de todos os seres humanos:
Ela (Ísis) personifica o princípio feminino que possibilita a regressão e depois a transformação.[...] Ela é um tipo de experiência calcada no sentimento cuja função é curar a dissociação psíquica, uma vez que ela traz à luz uma personalidade interior mais elevada.
A iniciação na doutrina destes mistérios permitiu a Lúcio vivenciar o Mito de Ísis e Osíris, dando-lhe o sentimento subjetivo daquilo que seja seu destino, o que numa escala bem menor, se assemelha ao desses seres míticos. 
Ele pode apreciar o sentido mais profundo daquilo que lhe aconteceu além de perceber que havia um plano religioso ou um desígnio divino por trás da superfície das coisas. Se o indivíduo é capaz de enxergar seu sofrimento e suas complicações de forma mais ampliada, se toma conhecimento de sua origem e de suas razões mais profundas, isso tem um efeito curativo e deixa a sensação de que, no final das contas, todo o processo, a despeito de toda a dor, é algo impregnado de significação, devendo, portanto, ser aceito e transformado.