1.1.16

Marte - Fritz Zorn

Hoje falarei de um livro que trata de guerra e o seu nome é Marte, escrito por Fritz Zorn. A guerra a qual ele se refere é aquela travada no íntimo de cada um na busca de si mesmo.

O livro Marte é a história autobiográfica de Fritz Zorn, um suíço nascido na década de quarenta, e que com 30 anos de idade se dá conta que sofre de profunda depressão e descobre que tem câncer. Sua história merece atenção por ser o desnudamento da alma de um homem fruto de seu tempo e que no seu esforço de reconstruir o caminho que levou à sua morte, indica o caminho que pode nos conduzir a uma vida mais abundante.

A CAUSA
Essa é a pergunta fundamental que dá origem ao livro. Qual a causa do câncer? Muitos conseguem descrever o que ele é, mas ninguém consegue precisar a sua causa. Em suas reflexões o autor consegue determinar a causa de seu câncer como:
Embora não soubesse ainda que tinha câncer, intuitivamente formulava o diagnóstico acertado, pois encarava o tumor [no pescoço] como "lágrimas engolidas".
O câncer se afigurava para o autor a somatização de algo que permeava o campo emocional. Seriam todas as "lágrimas engolidas" no decorrer de seus 30 anos, seriam aqueles sentimentos incômodos que ele passou 30 anos escondendo na busca de aparentar a normalidade e a felicidade que esperavam que ele fosse possuidor.

A somatização do sofrimento no câncer físico leva o autor a constatação de que ele já sofria de um câncer em sua alma. Esse câncer em sua alma lhe consumiu a capacidade de viver e ele percebeu, com certa esperança, que se ele superasse o sofrimento que carregava em sua alma fosse capaz de evitar o fim que lhe conduzia aquele sofrimento em seu físico. O livro é uma das formas que o autor encontrou de rever sua vida, e portanto tem como objetivo a redenção.

O SI MESMO
O início do livro analisa a influência da criação recebida pelos pais do autor na doença que lhe acometeu a alma. Ele percebe que seus pais também são vítimas, frutos de uma geração que não era capaz de refletir sobre Deus, pois esse era um tema difícil. Incapaz de falar sobre dinheiro, pois esse era um tema impróprio. Não se falava sobre sexualidade pois este era um grande pecado. Era incapaz de até mesmo discutir, de brigar, pois simplesmente não sabiam como fazê-lo. Sua infância foi vivida nessa redoma de vidro que lhe impedia de tomar contato daquilo que poderia ser chamado de vida. Sem no entanto retirar o ar de felicidade e harmonia que emanava dessa leveza insustentável.

A sociedade da época, não muito diferente daquela de hoje, tinha inúmeras amostras de que a opinião pessoal deveria sempre ser submetida ao julgamento daquela opinião que prevalece na coletividade amorfa. Portanto foi incutido em sua cabeça de criança a necessidade de refinar seu gosto segundo os padrões que lhe eram esperados e não ao seu próprio. No entanto a insegurança que acompanha a criança traz também a incapacidade de desenvolver qualquer gosto pessoal por qualquer tema pelo constante medo de desagradar e ser dessa forma uma pessoa ridícula.

Isso me chamou bastante a atenção, pois me lembrou de algumas figuras que topei na vida que se riam de mim à menor menção de algum tema que lhes era diferente, a exemplo de filosofia, meditação e poesia. Nessa época percebi que o melhor que fazia era guardar minhas opiniões para evitar ser ridículo no meio daqueles julgadores de minha alma. Mas percebo hoje que não posso simplesmente silenciar, e devo sim, falar de maneira adequada meus pensamentos que são válidos e que sinto a necessidade de comunicar. Ainda que para isso corra o risco de parecer ridículo aos olhos de quem não tem opiniões, que segue as convenções e que são escravo das aparências.

Sem entrar nos fatos que determinaram essa dissociação do autor, que ocasionou essa ruptura com ele mesmo e a realidade, o que percebo ser digno de nota é que o plano de fundo dessas experiências foram a constante alienação da vontade, a sua posterior atrofiação, até a nulidade de sua personalidade para um estado de ser exclusivamente reativo.

A DEPRESSÃO
Será que seriamos capazes de reconhecer a existência da depressão no outro ou em nós mesmo? Seja ela superficial ou profunda? Acredito que não seja uma tarefa tão fácil, por isso vou citar um trecho que o autor define a depressão como:
Tudo é cinza, frio e vazio. Nada da prazer e tudo o que é doloroso é sentido com dor exagerada. Não se tem mais esperança e não se enxerga mais nada além de um presente infeliz e sem sentido. Todas as coisas não dão alegria; em grupo, a pessoa se sente mais só do que nunca; todos os planos para se deixar a depressão são logo deixados de lado "porque não adianta mesmo". As duas características principais da depressão são a desesperança e a solidão.
A descrição da depressão feita pelo autor indica a possibilidade dela estar perto sem que a percebamos, pois acabamos por nos acostumar com o estado de ser que ela nos gera. O autor comenta em vários trechos do livro que ele passou anos tentando sustentar a máscara da normalidade até que um dia ela pesou mais do que nunca, pois sua vida era uma fuga e ele estava profundamente afundado na "desesperança e solidão". Até que um dia aconteceram dois fatos que lhe tirou a máscara.

A primeira delas foi a morte de um vizinho. Essa perda lhe fez pensar que a morte tinha chegado até sua casa. Em seguida recebeu o impacto do segundo fato através de um filme que viu no cinema. A história consistia em um homem que buscava ficar com a amante e para tanto matou a esposa; após isso percebeu o erro que tinha cometido, pois gostava um pouco dela; decidiu matar também a amante e por conta disso foi preso e condenado à morte.

Após essas experiências o autor percebe que até aquele personagem conseguiu morrer por ago que a ele não foi dado experimentar, que era um pouco de amor. E vendo-se na presença da morte e destituído, ou melhor, isento de qualquer sentimento, viu-se miserável em sua vida que se apresentava pior do que uma morte, e resolveu mudar.

Já havia ido à terapia por duas vezes, mas a terceira foi aquela que lhe retirou as máscaras e desconstruiu a série de mentiras que ele levantou para proteger seu fraco ego do contato do fato que seus 30 anos de vida foram falsos. Percebeu que sua alma padecia de uma terrível doença que lhe matava a capacidade de viver e que graças ao câncer físico ele era grato pela possibilidade que lhe gerou de superar o câncer em sua alma.

A NEUROSE
A causa da depressão era de fundo neurótico:
Nada conseguia irritar-me nem abater-me; trazia sempre um sorrizinho nos lábios, para ser a imagem mesma de um indivíduo sem frustrações. Quanto mais deprimido eu estava no fundo do meu coração, mais eu sorri por fora. Quanto mais negro por dentro, mais claro por fora. A fissura do meu ego se abria cada vez mais. Minha eterna comédia tornava-se cada vez mais um hábito, e esse hábito me tornava tão familiar a minha máscara de eufemismo que a cada dia ela se identificava mais comigo mesmo.
Muitas era as causas da depressão, mas ela tinha como elemento fundamental a divisão da personalidade. Essa divisão da personalidade é em si a definição de neurose. A forma como o autor cita sua educação, seu trabalho, sua solidão, sua sexualidade... tudo traz o traço da cisão. E como em regra vivemos para satisfazer a visão dos outros, preferimos a cisão interna, do que a cisão externa. Preferimos a neurose do que o incômodo que retira o outro de sua paz. O que remete a uma bela frase do autor: "A vida inteira fui bonzinho e bem comportado e por isso adquiri o câncer". Acredito que essa frase não merece ser colocada sem o seu contexto. Por isso transcrevo um trecho do livro que fala de cisão e de como ela existia na vida do autor:
Quem se une vive, quem se mantém afastado morre. Mas esse era exatamente o lema sob o qual se colocava minha família: mantenha-se afastado e morra! A lógica dessa fórmula, desse mandamento, é impecável: nada pode chamar menos a atenção por sua incorreção do que alguma coisa que esteja morta. Poderia dizer assim: eu era correto demais para ser apto para o amor; na verdade, eu não era sequer eu mesmo, só era correto; pois, ainda que meu verdadeiro eu tivesse desejado fazer-se notar no mundo da cortesia e do formalismo, teria logo chamado a atenção como incômodo. Eu só tinha a função de entrar em concordância harmoniosa com aquilo que acreditava ser o mundo. Eu não era eu enquanto indivíduo com nítidos contornos perante o mundo que me circundava; era apenas a partícula conformista desse mesmo mundo. Não era nem um membro útil da sociedade humana, simplesmente um membro bem-educado.
A cisão gera neurose e neurose leva à perda de energia quando se busca gerencia o conflito da cisão que por fim gera a depressão. A depressão é a vida que escorre entre os conflitos neuróticos de uma pessoa que vê o mundo através de uma perspectiva distorcida. A neurose é acompanhada de vários elementos que garantem sua continuidade e sustentação, tal como a Vergonha, o Sentimento de Inferioridade, a Culpa e a Raiva voltada para dentro. Como consequência da neurose, da cisão interna, surge o progressiva desconexão de nós com nós mesmos e de nós com os outros; e repetindo a frase do autor: "quem se une vive, quem se mantém afastado morre".

Quando refletimos a respeito dos sentimentos que sustentam a neurose, percebemos que a sua validade nos é ignorada e portanto estabelecemos uma relação negativa com eles. O livro O Lobo da Estepe exemplifica isso de maneira ilustrativa quando nos mostra que fomos criados separando o joio do trigo... sem perceber que no jardim de nossa vida há milhares de espécies além dessas duas e que ao reduzi-as a esse critério reducionista acabamos por jogar fora as mais belas flores.

A CLAREZA
O autor não só a propõe como ferramenta para superação, mas também se utiliza no livro da chamada Clareza. São três os objetivos que ele considera que existe na vida. O primeiro deles é a Felicidade. Embora saibamos que nem sempre a vida nos presenteia com momentos felizes, e muitas vezes, tal como a vida do autor, a vida é uma coleção de infelicidades continuas. Nesse passo surge o segundo objetivo da vida, que é o Sentido. Se refletirmos atentamente será possível perceber que ainda que sejamos acossados por um mal sem fim, se encontrarmos nele um sentido, o seu peso será mais suave e mais fácil de se suportar. Mas é possível que alguns dos sofrimentos que passamos sejam destituídos de qualquer sentido, restando-nos apenas entende-lo com Clareza, sendo esse o terceiro objetivo da vida.

A dor quando surge não vem com crachá ou carta de apresentação, sabemos pouco dela, nem mesmo seu nome sabemos e o pior... onde dói. Um dos livros de Kafka chamado O Processo, que aborda a história de um homem que é preso sem saber de qual crime era acusado e que foi condenado a morte, nas suas palavras, "como um cão". Morreu sem ter clareza daquilo que era vitima, de qual crime era acusado, de nada! — "Como um cão! — disse. Era como se a vergonha devesse sobreviver-lhe". O que leva a percepção que a clareza no momento da morte, pelo menos traz uma dignidade ao que jazerá morto em poucos instantes... e isso também suaviza a dor.

O autor traz a Clareza inicialmente como a percepção daquilo que nós é próprio. A exemplo do Sol que brilha, das formigas que passam os dias atarefadas, à Lua que gira em torno da Terra. Ainda que não entendamos o sentido de suas ações, elas cumprem com seu papel. Através da Clareza podemos perceber aquilo que esperamos de nós mesmos. Como o Mário Sérgio Cortella diz em uma entrevista: "Se a vida tem sentido? Não sei. Mas é certo que posso ser capaz de dar-lhe um". Para tanto, é preciso ter clareza.

A segunda linha que trás significado à Clareza é a de uma profunda auto-análise em tudo aquilo que nos habita, em tudo que somos. No gênesis Deus incita a Adão dar nome a todos os animais, nós somos chamados a saber identificar nossos sentimentos e pensamentos. É certo que uma dor seja mais suportável quando sabemos seu potencial de nos afetar, sua causa, seu histórico de incidência. Embora não trate profundamente desse tema neste texto, talvez esse seja o elemento essencial para garantir um grau de Clareza.

PERCEPÇÕES FINAIS
Esse livro é um convite para repensar a forma como nos posicionamos em relação ao mundo e nós mesmos. O final do livro está indicando a luta entre o autor e Deus. Ele até indica que caso Deus não existisse, precisávamos inventá-lo nem que fosse só para lhe quebrar a cara.

Ele nos incita a deixar o silêncio sepulcral das casas burguesas para sermos nós mesmos, ainda que incômodos e barulhentos, pois "cada um se embrutece no sossego de suas quatro paredes, e , quando seu processo de embrutecimento é perturbado por um ruído estranho, a pessoa se sente lesada e seu direito de se embrutecer e chama a polícia". E diz mais:
por isso acredito que esse não-querer-incomodar é algo ruim, pois justamente é preciso incomodar. Não basta existir; é preciso também chamar a atenção para o fato de que se existe. Não basta apenas ser, é preciso também atuar. Contudo, quem atua incomoda  e isso no sentido mais nobre do termo.
Ele também nos faz querer encontrar aquela parte em nós mesmos que não foi afetada pelo mal que nos acometeu, e essa parte é justamente aquela que dói. "Mas o que constitui essa parte de mim que não é degenerada, é isso o que importa; é o que há de interessante e especial dentro dessa história de uma infelicidade desinteressante, porque comum".

E para finalizar:
Agora estou no inferno, verdade que o inferno é pavoroso, mas vale a pena estar nele. Camus vai além e, em O Mito de Sísifo, e afirma, a respeito de Sísifo no inferno: "Il est Heureux" [Ele está feliz].